Não dá pra explicar a sensação de respirar como se a garganta fosse um filtro de café velho. Na segunda-feira acordei com a janela trancada girando mais que a roleta da Loteria Esportiva e aquele cheiro de queimado que não tem nome. O céu de São Paulo parecia um filtro de Instagram que ninguém sabia como usar. A notícia da ONU já tava lá cheia de gráficos e promessas mas nada me preparou pra sentir o carvão nos pulmões enquanto eu tentava não engasgar com o chimarrão que, por alguma razão, hoje tinha gosto de fumaça.
Eu já tinha passado a semana inteira dentro de casa de pijama de pantufas e a única companhia era o cachorro do vizinho o Bilu que acha que latir pra parede conta como “conversar”. Bilu parecia entender que eu estava doente porque ele ficou quietinho só abanando o rabo quando eu derramava mais água quente no mate. E eu entre um gole e outro li o relatório da ONU que falava de “aumento de partículas PM2,5” e “impactos na saúde respiratória”. Aquelas palavras pareciam código de um videogame que eu nunca joguei mas o barulho da minha tosse dizia que era real tipo aquele dia em que o ônibus da escola cheirou a pipoca queimada porque um incêndio tinha pegado na estrada. Lembro ainda da cara do motorista que tentou disfarçar com um sorriso amarelo enquanto o cheiro de queimado subia como fumaça de vela de aniversário.
➤ Memórias de infância que não ajudam
Quando eu era moleque minha avó me levava pra Minas nas férias. Lá o ar era tão puro que dava pra ver a fumaça das fogueiras de festa junina a quilômetros de distância. Eu lembro de correr pelos campos deitar na grama e olhar as nuvens como se fossem algodão doce. Agora aqui a única nuvem que vejo é a de fumaça que cobre a cidade como um cobertor velho. Minha avó sempre dizia que “ar puro é o melhor remédio” mas não sabia que o remédio seria um relatório da ONU que ninguém lê até que a própria respiração comece a falhar
Aí no meio da minha crise o vizinho da porta ao lado começou a falar da festa que ia fazer no sábado. Ele jurou que ia contratar um DJ que toca funk antigo mas também disse que o cachorro dele o Tico tem alergia a poeira. Eu pensei: “Ótimo, mais um motivo pra eu fechar a janela”. Ele ainda contou que o tio dele que mora no interior tem uma plantação de eucalipto que supostamente “limpa o ar”. Eu ri porque, sinceramente, um eucalipto não vai limpar a fumaça de um incêndio que está a 500 km de distância. Mas a gente tem que se agarrar a alguma esperança né?
➤ Chimarrão, caxias e a verdade que ninguém quer aceitar
Beber chimarrão enquanto o peito aperta parece uma piada de mau gosto. Mas tem um fato estranho que descobri hoje: a erva-mate tem mais antioxidantes que o chá verde e ainda tem cafeína. Ou seja é tipo um energético natural que te deixa acordado e ao mesmo tempo tenta reparar os danos que a fumaça causa nos pulmões. Eu tomei três cuias cada uma mais quente que a anterior enquanto o Wi‑Fi da minha operadora fazia barulhos de “reconectando…”. A cada “reconectando” eu ficava mais irritado porque a página do relatório da ONU não carregava. Quando finalmente abriu vi aquelas imagens de satélite mostrando manchas vermelhas sobre o Brasil como se fosse um mapa de calor de pizza. E eu sentado no sofá com o Bilu latindo pra sombra percebi que não era só “um problema distante”.
A verdade que ninguém quer aceitar é que o relatório da ONU não é só estatística ele é a cara da fumaça que eu sinto na garganta. Não tem nada de abstrato. Cada número representa um dia a menos de ar limpo cada gráfico mostra a gente perdendo a capacidade de respirar sem esforço. Eu vi o número de mortes atribuídas a poluição e pensei na minha tia que tem asma e na minha mãe que sempre reclamava que o ar da cidade era “pesado”. Agora a gente tem que lidar com a realidade de que a “pesadez” virou literalmente poeira nos pulmões
Não vou ficar aqui de papo mole. O que eu quero é que a gente pare de achar que a crise climática é algo que acontece lá fora em outra terra enquanto a gente assiste ao Corinthians na TV e o cachorro do vizinho come o resto da pipoca. Eu preciso de um ar que não me faça tossir a cada frase que escrevo. Preciso de um futuro onde eu possa abrir a janela sem medo de engolir cinzas. Enquanto isso sigo aqui com o chimarrão quente a tosse ruidosa e o Wi‑Fi que decide tirar férias no meio da frase. Se alguém ler isso que saiba que o relatório da ONU não é só papel ele é o cheiro que invade a casa a tosse que não para e o lembrete de que a natureza não vai esperar a gente terminar de assistir o próximo jogo.
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